ENTREVISTA
MARCO BARROSO (LUME)
jazz.pt
1.
Após algum tempo de espera, está finalmente disponível o disco de
estreia do Lisbon Underground Music Ensemble (LUME). Como o
caracteriza? (desenvolver...)
O disco
procura registar e dar a conhecer o trabalho que o LUME, na sua
dimensão autoral e de colectivo, tem vindo a desenvolver. Tratou-se,
antes de mais, de seleccionar um conjunto de peças dentro do
reportório que o grupo tem apresentado. Sendo esse reportório, bem
como o conceito do projecto, desenvolvido por mim próprio, há
necessariamente um lado bastante pessoal no trabalho levado a cabo. O
que procurei, no caso particular do disco, foi criar um contexto onde
as peças assumissem uma certa funcionalidade, dentro de um enredo
que lhes conferisse uma nova roupagem e reforçasse o seu sentido
narrativo. Neste processo acabei por recorrer com alguma abundância
a sonoridades sintéticas e concretistas que transportam a música
para um universo mais electro-acústico. O resultado de tudo isto
acabou por ser uma maior dramatização do discurso musical. Por
outro lado, o disco procura transmitir a dinâmica de um grupo
heterógneo com musicos de sensibilidades e expressões diversas,
onde é imperativa a confluência do sentido eclético da composição
com a pluralidade de espírito dos seus intérpretes/improvisadores.
2.
O som da formação assume contornos “pós-modernos”, com um
vincado carácter de síntese e eclectismo. Agrada-lhe esse lado de
aglutinação e, ao mesmo tempo, de subversão de rótulos?
Esse
lado de aglutinação, presente na minha música, acontece
naturalmente, dado, talvez, o gosto que tenho por diferentes tipos de
música e por me ser espontâneo o recurso a procedimentos de colagem
e citação que facilmente conduzem a situações de heterogeneidade.
Mas esse sincretismo, por si só, não tem nada de particularmente
subversivo (pelo menos em termos positivos) se não for enquadrado
numa visão consistente sobre aspectos fundamentais como contraponto,
harmonia, textura ou forma. No fundo, essa disparidade de fontes e
referências deve surgir no discurso musical como uma necessidade
formal e expressiva e não simplesmente para servir a ideia de que
misturar uma série de coisas diferentes, é, a priori, algo de
interessante e conseguido.
3.
Fale-nos sobre a maturação do disco. Foi um processo natural? Houve
mudanças de rumo no decorrer do mesmo?
Bem,
foi um processo natural de maturação que se vinha desenrolando já
há bastante tempo, pelo menos no que concerne aos aspectos de
interpretação e conhecimento do reportório, bem como de
entrosamento e enquadramento das diferentes personalidades musicais
da banda. Depois da gravação, houve um periodo de
produção/composição de material não acústico com o intuito de
ser complementado com o que se tinha produzido em estúdio. Foi um
processo demorado (mais longo do que desejaria) mas que acabou por
chegar a bom porto e finalmente está pronto para sair.
4.
É patente nas suas composições a presença de uma multiplicidade
de elementos musicais que se entrecruzam, e que vão do jazz ao funk,
passando pelo rock
e pela música contemporânea. Quais são as principais referências
que contribuíram para moldar a sua abordagem?
Sendo
uma música que faz confluir universos diferentes, o espectro das
minhas referências situa-se, de alguma forma, entre as áreas do
rock, contemporânea e jazz. Em grande medida, o que eu faço tem a
ver com o aproveitamento de matéria-prima oriunda do rock, jazz e de
músicas alternativas que são transportados para contextos de maior
extensividade formal, onde há um trabalho minucioso e aprofundado ao
nivel da escrita. Compositores como Ligeti, Messiaen, Stravinsky,
Charles Ives ou Ravel são referências importantes para mim. Todos
eles evidenciam um sentido de ecletismo e, cada um, à sua maneira,
soube olhar para diferentes mundos e sintetizar elementos diversos na
procura de um estilo individual. E todos tiveram enorme inteligência
na forma como souberam evoluir e não ficar agarrados ao mesmo estilo
e aos mesmos procedimentos, sem perderem a sua identidade. Também
gosto de compositores da escola Polaca como Lutoslawski ou Penderecki
que a par do Ligeti, conseguiram feitos extraordinários no domínio
da textura. Noutro capítulo, Frank Zappa e Residents (especialmente
nas fases iniciais das suas obras) são referências seminais. Ambos
conseguiram articular um sentido de iconoclastia e de
descomprometimento com uma ambição e profundidade conceptual
invulgar, o que, de alguma maneira, me influenciou. Há também,
outras referências. Na sua pergunta fala de Funk. Na realidade não
é uma música que eu ouça muito, a não ser na forma mesclada do
rock, em bandas como os Red Hot Chili Peppers, Primus, Mr. Bungle,
Bad Brains ou Infectuos Grooves. Mas eu acho que há um lado na minha
música que tem a ver não só com o funk mas com a parte mais
popular e pulsante da música negra em geral. Há elementos de Blues,
Boogiewoogie ou Soul naquilo que faço. Enfim as influências podem
vir de muitos lados.
5.
No plano particular das big
bands quer destacar as
que mais o tenham marcado?
Posso
destacar algumas como o Duke ellington dos anos 40; Gil Evans, nos
anos 70, de discos como o Blues in Orbit e Svengali, Plays the music
of Jimmy Hendrix; O Sun Ra mais dos anos 60; o Don Ellis do Electric
Bath e Autumn; a Vienna Art Orchestra, nos primeiros discos. Enfim,
há outras coisas que vou ouvindo, de diferentes orientações, e de
forma mais ou menos dispersa como LJCO, NOW Orchestra, Exploding Star
Orchestra, Italian Instabile Orchestra, Flat Earth Society ou Django
Bates, só para citar alguns.
6.
O LUME foi criado em 2006 e é constituído por um conjunto de
músicos provenientes de diferentes áreas e que integram
simultaneamente outros projectos. Deduzo que seja algo complicada a
gestão da agenda de trabalho, mas também um factor de motivação
para quem compõe, poder dispor de músicos deste quilate...
(comentar...)
Tenho
a felicidade de trabalhar com excelentes músicos, num ambiente
saudável de entrega, sinergia e cooperação, o que é muito
motivante. Esta interacção é particularmente interessante dado as
diferentes proveniências dos elementos da banda e o espirito de
abertura e curiosidade que existe. Naturalmente, são pessoas muito
ocupados e a gestão dos ensaios, tendo ainda em conta a dimensão da
banda, é complicada. Apesar disso, as coisas têm funcionado.
7.
Que afinidades encontra entre uma formação como o LUME e o modelo
tradicional de big band
de jazz?
Há
afinidades óbvias que começam logo pela sua formação
instrumental. O LUME tem um tipo de instrumentação e uma sua
organização que decorre do modelo da Bigband e, naturalmente, lida
com signos que estão associados ao seu idioma próprio. Há contudo
algumas diferenças que lhe conferem outras possibilidades e um
diferente enquadramento. A estrutura clássica da Bigband, enquanto
modelo orquestral tinha funções de amplificação em que a sua
instrumentação alargada não implicava necessariamente uma maior
riqueza harmónica. Por sua vez, se atentarmos, por exemplo, na
formação da VAO (em especial nas versões com menos palhetas e
metais) ou, ainda mais atrás, na pequena orquestra do Rod Levitt
(exemplo curioso, especialmente para época, até pela sua
obscuridade) vemos uma estrutura pequena, onde a função de
amplificação é preterida mas a substância harmónica é
optimizada ao máximo. No LUME, essa optimização não acontece por
redução do efectivo instrumental dos sopros mas por pequenas
alterações (4 saxs do naipe, a presença constante da flauta e
clarinete) que lhe permitem alargar o conteúdo harmónico, bem como
as possibilidades de timbre, textura e de registo. O resultado acaba
por ser um cruzamento entre uma Bigband e um ensemble de musica
contemporânea.
8.
Em Portugal existem actualmente várias big
bands,
independentemente da orientação estética e do carácter mais ou
menos permanente da sua actividade: Orquestra Jazz de Matosinhos,
Orquestra de Jazz de Lagos, Reunion Big Jazz Band, Orquestra de Jorge
Costa Pinto, Tora Tora Big Band, Big Band da Nazaré, Big Band do Hot
Clube de Portugal... Conhece o trabalho destas formações? Como
analisa o panorama das big
bands no nosso País?
Acompanho,
umas com mais proximidade que outras. No seu conjunto revelam uma
actividade interessante deste tipo de formações em Portugal, o que
é bastante enriquecedor. As Bigbands, pelo número de músicos e
pela dimensão de meios que envolvem, estão muitas vezes associadas
a instituições como escolas, associações ou clubes, desenvolvendo
assim um papel formativo e pedagógico muito importante. É um dado
positivo que estas tenham vindo a crescer. Das orquestras que referiu
é de registar o aparecimento de formações fora dos grandes centros
urbanos e o sucesso internacional da Bigband de Matosinhos.
9.
O repertório do LUME é constituído por composições da sua
autoria. Trata-se, portanto, de um projecto de autor. Considera que
esta é a principal característica distintiva do LUME face a outras
formações do género?
A
principal característica do LUME é a sua música e os seus
intérpretes/improvisadores. É isso que a poderá distinguir de
outras formações. De facto, o LUME, introduziu em Portugal, um
trabalho, com uma perspectiva de autoralidade e uma orientação
estética que me parece inédito em Portugal. Agora, isso não
significa grande coisa, se tal não for consubstanciado com qualidade
de composição, interpretação e relevância dos seus solistas.
10.
Mas concebe que, no futuro, a formação possa vir a integrar
repertório alheio ou isso implicaria o fim do conceito original do
projecto?
Neste
momento isso não está em perspectiva e, de facto, alteraria os
moldes em que o projecto foi concebido e se tem desenvolvido. Mas não
tenho uma visão absoluta e fechada sobre o que o LUME poderá vir a
ser no futuro.
11.
Duke Ellington compunha a pensar nas características particulares
dos músicos que consigo trabalhavam. Isso passa-se consigo? Se os
músicos fossem outros a sua música poderia ser diferente?
(comentar...)
Naturalmente,
tenho de levar em conta as características dos músicos, não só em
termos interpretativos mas também na forma como os diferentes
solistas se enquadram no contexto da composição. Mas isto não
implica que o substrato do que está escrito tivesse de mudar se os
músicos não fossem os mesmos. Outros músicos trariam nuances de
interpretação e expressividade solística, naturalmente diferente.
No LUME existe uma grande identificação e sinergia entre o que eu
proponho e o que restantes membros da banda podem trazer,
estabelecendo-se assim uma excelente base de comunicação e
entendimento para que os resultados finais sejam os mais profícuos.
12.
A formação dos músicos de jazz em Portugal é cada vez mais
sólida. Acontece muitas vezes, porém, que alguns tardam em
libertar-se de uma certa formatação académica e em seguir o seu
próprio caminho. Considera já ter encontrado a sua “voz própria”?
Quais os vectores centrais que norteiam a sua postura enquanto
criador artístico?
Não
sei se encontrei uma voz própria. Também nunca fui alvo (muita
menos na area do Jazz) de uma formatação académica porque, na
realidade, não houve oportunidade para que tal pudesse acontecer,
uma vez que a minha formação, em termos académicos, deu-se
fundamentalmente na área da musica clássica/contemporânea. Seja
como fôr, já há muito tempo que percebi que o percurso de um
músico é, de certa maneira, autodidacta. É feito de escolhas, de
dúvidas e expectativas que são eminenetemente pessoais. Mas,
talvez, como dizia o Stockhausen, o aspecto de uma expressão pessoal
seja uma coisa irrelevante, porque o que interessa é o processo de
revelação de um novo mundo que se abre ao compositor. É na
profunda idenificação que o autor sente com esse novo universo que
poderá estar a sua voz.
13.
O jornalista e escritor norte-americano Malcolm Gladwell disse que se
irrita quando lhe perguntam como surgem as ideias para as suas
histórias. Diz ele que o que importa é o ponto de chegada, não o
de partida. Mas arrisco: como é o seu processo de trabalho criativo?
É um compositor metódico?
Não
tenho propriamente nenhum método objectivo. Vou apalpando no escuro,
socorrendo-me, fundamentalmente, da minha intuição. Acho que o
Malcom Gladwell tem razão.
14.
Têm tocado muito ao vivo? Como tem sido a reacção do público nos
concertos?
Ultimamente
o trabalho do LUME tem-se concentrado mais na produção do disco. Em
todo o caso, dos concertos que temos feito, as reacções têm sido
bastante positivas. E, felizmente temos conseguido atrair público de
diferentes gostos e sensibilidades.
15.
Escolheu este formato para se exprimir musicalmente. Quais os motivos
que estiveram por detrás desta opção?
Essencialmente,
tem a ver com razões de idiossincrasia pessoal. Eu sempre gostei da
sonoridade dos sopros, e a formação instrumental que no LUME
estabeleci, tem servido as minhas necessidades expressivas. No fundo,
o que pretendi no LUME foi lidar com o objecto concreto da Bigband e,
naturalmente, com índices que lhe estão associados, manipulando-o e
distorcendo-o à minha maneira.
16.
Vê-se a si próprio como um compositor, em sentido estrito, ou mais
como um organizador, um estratega sonoro?
Vejo-me
como um compositor, o que no caso concreto de um projecto onde também
estou envolvido como director e intérprete implica igualmente as
restantes qualidades ou funções.
17.
Evan Parker disse que a
«improvisação é um método de composição». Concorda com esta
perspectiva?
Concordo.
De facto, a improvisação pode ser um meio para atingir determinados
resultados que dificilmente podem ser obtidos através de notação.
Mas é uma questão um pouco complexa. Não será sempre um meio para
compôr? Ou composição não é sempre uma forma de improvisação?
É claro que se pensarmos na improvisação enquanto cultura musical,
de facto, ela é diferente, nos seus pressupostos ideológicos, da
música que vive essencialmente da notação. Agora, na prática,
acabam por estar dependentes uma da outra. Parece-me que o
improvisador é tão informado pela sua memória quanto o compositor
ou intérprete obrigado a reagir às circunstâncias específicas de
um determinado momento. Penso que é interessante a consciência
disto mas também o facto de que, tomando-as como formas de expressão
independentes, se podem, contudo, relacionar num resultado sinérgico.
É o que de alguma forma procuro que aconteça no LUME.
18.
Interessa-lhe a ideia de “improvisação estruturada”? Está
familiarizado com o “file-card” de John Zorn (organização de
blocos sonoros com recurso a instruções vertidas em cartões) ou o
“conducting” de Butch Morris, forma de dirigir baseada numa
géstica própria?
Conheço
o trabalho dos dois. Vi, inclusivamente, o Butch Morris ao vivo na
penúltima edição do Jazz em Agosto. Ambos são processos
interessantes e idiossincráticos. No caso do Butch Morris há um
tipo de direcção que envolve um métier elaborado ao nivel da
expressão corporal e gestual. No LUME, toda a improvisação é, de
alguma forma, estruturada, quer no seu enquadramento com a
composição, quer, na organização formal das situações mais
livres. O aspecto da «condução», contudo, não é dominante,
antes de mais pelo facto de o meu papel ao piano impedir a
possibilidade de direcção efectiva e permanente e, depois, não
acho ncessariamente enfrequecedora, pelo contrário, a situação de
uma banda onde os músicos têm de sentir o conjunto e não seguir um
maestro. Os niveis de concentração, envolvimento e sentido de
integração têm de maiores.
19.
A electrónica veio alterar todo o paradigma de construção musical
e do improvisação. Como encara a utilização de instrumentos
electrónicos? Equaciona a possibilidade de o LUME se poder vir a
tornar, num futuro mais ou menos próximo, num ensemble
electro-acústico?
Sim,
a electrónica veio permitir um universo de novas possibilidades e
revolucionar, em particular, os domínios do timbre e da textura. No
disco do LUME, a electrónica surge no contexto de uma situação
específica de estúdio que não pretende ser o duplicado da situação
live. Em concerto, o LUME é predominantemente acústico. Mas tudo
está em aberto para o futuro.
20.
A velha querela entre swing
e improvisação tem animado intermináveis discussões, com os
partidários de cada uma das tendências a esgrimirem acesos
argumentos. Conceitos como os de “tradição” e “vanguarda”
vêm constantemente à liça. Como se posiciona face a esta temática?
O swing
é, para si, ingrediente essencial? (desenvolver...)
Isso
é um problema de todas as músicas que desenvolveram uma tradição
forte e se tornaram canónicas. Acontece no Jazz como na música
Clássica ou no Fado. Mas não é uma questão que me interesse
particularmente, estar a discutir o ponto onde o Jazz ainda é Jazz
ou deixa de o ser.
21.
Faz então sentido que se continue a cair nas recorrentes divisões
entre “o que é jazz” e “o que não é jazz”?
Para
algumas fará, para outras não fará, sem que isso, necessariamente,
implique uma maior legitimidade da parte de uns ou de outros.
22.
Que rumo pretende tomar daqui para a frente? Já pensa no segundo
disco?
Penso
em muita coisa mas é prematuro falar.