Tuesday, October 01, 2013



ENTREVISTA MARCO BARROSO (LUME)
jazz.pt

1. Após algum tempo de espera, está finalmente disponível o disco de estreia do Lisbon Underground Music Ensemble (LUME). Como o caracteriza? (desenvolver...)
O disco procura registar e dar a conhecer o trabalho que o LUME, na sua dimensão autoral e de colectivo, tem vindo a desenvolver. Tratou-se, antes de mais, de seleccionar um conjunto de peças dentro do reportório que o grupo tem apresentado. Sendo esse reportório, bem como o conceito do projecto, desenvolvido por mim próprio, há necessariamente um lado bastante pessoal no trabalho levado a cabo. O que procurei, no caso particular do disco, foi criar um contexto onde as peças assumissem uma certa funcionalidade, dentro de um enredo que lhes conferisse uma nova roupagem e reforçasse o seu sentido narrativo. Neste processo acabei por recorrer com alguma abundância a sonoridades sintéticas e concretistas que transportam a música para um universo mais electro-acústico. O resultado de tudo isto acabou por ser uma maior dramatização do discurso musical. Por outro lado, o disco procura transmitir a dinâmica de um grupo heterógneo com musicos de sensibilidades e expressões diversas, onde é imperativa a confluência do sentido eclético da composição com a pluralidade de espírito dos seus intérpretes/improvisadores.

2. O som da formação assume contornos “pós-modernos”, com um vincado carácter de síntese e eclectismo. Agrada-lhe esse lado de aglutinação e, ao mesmo tempo, de subversão de rótulos?
Esse lado de aglutinação, presente na minha música, acontece naturalmente, dado, talvez, o gosto que tenho por diferentes tipos de música e por me ser espontâneo o recurso a procedimentos de colagem e citação que facilmente conduzem a situações de heterogeneidade. Mas esse sincretismo, por si só, não tem nada de particularmente subversivo (pelo menos em termos positivos) se não for enquadrado numa visão consistente sobre aspectos fundamentais como contraponto, harmonia, textura ou forma. No fundo, essa disparidade de fontes e referências deve surgir no discurso musical como uma necessidade formal e expressiva e não simplesmente para servir a ideia de que misturar uma série de coisas diferentes, é, a priori, algo de interessante e conseguido.

3. Fale-nos sobre a maturação do disco. Foi um processo natural? Houve mudanças de rumo no decorrer do mesmo?
Bem, foi um processo natural de maturação que se vinha desenrolando já há bastante tempo, pelo menos no que concerne aos aspectos de interpretação e conhecimento do reportório, bem como de entrosamento e enquadramento das diferentes personalidades musicais da banda. Depois da gravação, houve um periodo de produção/composição de material não acústico com o intuito de ser complementado com o que se tinha produzido em estúdio. Foi um processo demorado (mais longo do que desejaria) mas que acabou por chegar a bom porto e finalmente está pronto para sair.

4. É patente nas suas composições a presença de uma multiplicidade de elementos musicais que se entrecruzam, e que vão do jazz ao funk, passando pelo rock e pela música contemporânea. Quais são as principais referências que contribuíram para moldar a sua abordagem?
Sendo uma música que faz confluir universos diferentes, o espectro das minhas referências situa-se, de alguma forma, entre as áreas do rock, contemporânea e jazz. Em grande medida, o que eu faço tem a ver com o aproveitamento de matéria-prima oriunda do rock, jazz e de músicas alternativas que são transportados para contextos de maior extensividade formal, onde há um trabalho minucioso e aprofundado ao nivel da escrita. Compositores como Ligeti, Messiaen, Stravinsky, Charles Ives ou Ravel são referências importantes para mim. Todos eles evidenciam um sentido de ecletismo e, cada um, à sua maneira, soube olhar para diferentes mundos e sintetizar elementos diversos na procura de um estilo individual. E todos tiveram enorme inteligência na forma como souberam evoluir e não ficar agarrados ao mesmo estilo e aos mesmos procedimentos, sem perderem a sua identidade. Também gosto de compositores da escola Polaca como Lutoslawski ou Penderecki que a par do Ligeti, conseguiram feitos extraordinários no domínio da textura. Noutro capítulo, Frank Zappa e Residents (especialmente nas fases iniciais das suas obras) são referências seminais. Ambos conseguiram articular um sentido de iconoclastia e de descomprometimento com uma ambição e profundidade conceptual invulgar, o que, de alguma maneira, me influenciou. Há também, outras referências. Na sua pergunta fala de Funk. Na realidade não é uma música que eu ouça muito, a não ser na forma mesclada do rock, em bandas como os Red Hot Chili Peppers, Primus, Mr. Bungle, Bad Brains ou Infectuos Grooves. Mas eu acho que há um lado na minha música que tem a ver não só com o funk mas com a parte mais popular e pulsante da música negra em geral. Há elementos de Blues, Boogiewoogie ou Soul naquilo que faço. Enfim as influências podem vir de muitos lados.
5. No plano particular das big bands quer destacar as que mais o tenham marcado?
Posso destacar algumas como o Duke ellington dos anos 40; Gil Evans, nos anos 70, de discos como o Blues in Orbit e Svengali, Plays the music of Jimmy Hendrix; O Sun Ra mais dos anos 60; o Don Ellis do Electric Bath e Autumn; a Vienna Art Orchestra, nos primeiros discos. Enfim, há outras coisas que vou ouvindo, de diferentes orientações, e de forma mais ou menos dispersa como LJCO, NOW Orchestra, Exploding Star Orchestra, Italian Instabile Orchestra, Flat Earth Society ou Django Bates, só para citar alguns.

6. O LUME foi criado em 2006 e é constituído por um conjunto de músicos provenientes de diferentes áreas e que integram simultaneamente outros projectos. Deduzo que seja algo complicada a gestão da agenda de trabalho, mas também um factor de motivação para quem compõe, poder dispor de músicos deste quilate... (comentar...)
Tenho a felicidade de trabalhar com excelentes músicos, num ambiente saudável de entrega, sinergia e cooperação, o que é muito motivante. Esta interacção é particularmente interessante dado as diferentes proveniências dos elementos da banda e o espirito de abertura e curiosidade que existe. Naturalmente, são pessoas muito ocupados e a gestão dos ensaios, tendo ainda em conta a dimensão da banda, é complicada. Apesar disso, as coisas têm funcionado.

7. Que afinidades encontra entre uma formação como o LUME e o modelo tradicional de big band de jazz?
Há afinidades óbvias que começam logo pela sua formação instrumental. O LUME tem um tipo de instrumentação e uma sua organização que decorre do modelo da Bigband e, naturalmente, lida com signos que estão associados ao seu idioma próprio. Há contudo algumas diferenças que lhe conferem outras possibilidades e um diferente enquadramento. A estrutura clássica da Bigband, enquanto modelo orquestral tinha funções de amplificação em que a sua instrumentação alargada não implicava necessariamente uma maior riqueza harmónica. Por sua vez, se atentarmos, por exemplo, na formação da VAO (em especial nas versões com menos palhetas e metais) ou, ainda mais atrás, na pequena orquestra do Rod Levitt (exemplo curioso, especialmente para época, até pela sua obscuridade) vemos uma estrutura pequena, onde a função de amplificação é preterida mas a substância harmónica é optimizada ao máximo. No LUME, essa optimização não acontece por redução do efectivo instrumental dos sopros mas por pequenas alterações (4 saxs do naipe, a presença constante da flauta e clarinete) que lhe permitem alargar o conteúdo harmónico, bem como as possibilidades de timbre, textura e de registo. O resultado acaba por ser um cruzamento entre uma Bigband e um ensemble de musica contemporânea.

8. Em Portugal existem actualmente várias big bands, independentemente da orientação estética e do carácter mais ou menos permanente da sua actividade: Orquestra Jazz de Matosinhos, Orquestra de Jazz de Lagos, Reunion Big Jazz Band, Orquestra de Jorge Costa Pinto, Tora Tora Big Band, Big Band da Nazaré, Big Band do Hot Clube de Portugal... Conhece o trabalho destas formações? Como analisa o panorama das big bands no nosso País?
Acompanho, umas com mais proximidade que outras. No seu conjunto revelam uma actividade interessante deste tipo de formações em Portugal, o que é bastante enriquecedor. As Bigbands, pelo número de músicos e pela dimensão de meios que envolvem, estão muitas vezes associadas a instituições como escolas, associações ou clubes, desenvolvendo assim um papel formativo e pedagógico muito importante. É um dado positivo que estas tenham vindo a crescer. Das orquestras que referiu é de registar o aparecimento de formações fora dos grandes centros urbanos e o sucesso internacional da Bigband de Matosinhos.

9. O repertório do LUME é constituído por composições da sua autoria. Trata-se, portanto, de um projecto de autor. Considera que esta é a principal característica distintiva do LUME face a outras formações do género?
A principal característica do LUME é a sua música e os seus intérpretes/improvisadores. É isso que a poderá distinguir de outras formações. De facto, o LUME, introduziu em Portugal, um trabalho, com uma perspectiva de autoralidade e uma orientação estética que me parece inédito em Portugal. Agora, isso não significa grande coisa, se tal não for consubstanciado com qualidade de composição, interpretação e relevância dos seus solistas.

10. Mas concebe que, no futuro, a formação possa vir a integrar repertório alheio ou isso implicaria o fim do conceito original do projecto?
Neste momento isso não está em perspectiva e, de facto, alteraria os moldes em que o projecto foi concebido e se tem desenvolvido. Mas não tenho uma visão absoluta e fechada sobre o que o LUME poderá vir a ser no futuro.

11. Duke Ellington compunha a pensar nas características particulares dos músicos que consigo trabalhavam. Isso passa-se consigo? Se os músicos fossem outros a sua música poderia ser diferente? (comentar...)
Naturalmente, tenho de levar em conta as características dos músicos, não só em termos interpretativos mas também na forma como os diferentes solistas se enquadram no contexto da composição. Mas isto não implica que o substrato do que está escrito tivesse de mudar se os músicos não fossem os mesmos. Outros músicos trariam nuances de interpretação e expressividade solística, naturalmente diferente. No LUME existe uma grande identificação e sinergia entre o que eu proponho e o que restantes membros da banda podem trazer, estabelecendo-se assim uma excelente base de comunicação e entendimento para que os resultados finais sejam os mais profícuos.

12. A formação dos músicos de jazz em Portugal é cada vez mais sólida. Acontece muitas vezes, porém, que alguns tardam em libertar-se de uma certa formatação académica e em seguir o seu próprio caminho. Considera já ter encontrado a sua “voz própria”? Quais os vectores centrais que norteiam a sua postura enquanto criador artístico?
Não sei se encontrei uma voz própria. Também nunca fui alvo (muita menos na area do Jazz) de uma formatação académica porque, na realidade, não houve oportunidade para que tal pudesse acontecer, uma vez que a minha formação, em termos académicos, deu-se fundamentalmente na área da musica clássica/contemporânea. Seja como fôr, já há muito tempo que percebi que o percurso de um músico é, de certa maneira, autodidacta. É feito de escolhas, de dúvidas e expectativas que são eminenetemente pessoais. Mas, talvez, como dizia o Stockhausen, o aspecto de uma expressão pessoal seja uma coisa irrelevante, porque o que interessa é o processo de revelação de um novo mundo que se abre ao compositor. É na profunda idenificação que o autor sente com esse novo universo que poderá estar a sua voz.

13. O jornalista e escritor norte-americano Malcolm Gladwell disse que se irrita quando lhe perguntam como surgem as ideias para as suas histórias. Diz ele que o que importa é o ponto de chegada, não o de partida. Mas arrisco: como é o seu processo de trabalho criativo? É um compositor metódico?
Não tenho propriamente nenhum método objectivo. Vou apalpando no escuro, socorrendo-me, fundamentalmente, da minha intuição. Acho que o Malcom Gladwell tem razão.

14. Têm tocado muito ao vivo? Como tem sido a reacção do público nos concertos?
Ultimamente o trabalho do LUME tem-se concentrado mais na produção do disco. Em todo o caso, dos concertos que temos feito, as reacções têm sido bastante positivas. E, felizmente temos conseguido atrair público de diferentes gostos e sensibilidades.

15. Escolheu este formato para se exprimir musicalmente. Quais os motivos que estiveram por detrás desta opção?
Essencialmente, tem a ver com razões de idiossincrasia pessoal. Eu sempre gostei da sonoridade dos sopros, e a formação instrumental que no LUME estabeleci, tem servido as minhas necessidades expressivas. No fundo, o que pretendi no LUME foi lidar com o objecto concreto da Bigband e, naturalmente, com índices que lhe estão associados, manipulando-o e distorcendo-o à minha maneira.
16. Vê-se a si próprio como um compositor, em sentido estrito, ou mais como um organizador, um estratega sonoro?
Vejo-me como um compositor, o que no caso concreto de um projecto onde também estou envolvido como director e intérprete implica igualmente as restantes qualidades ou funções.

17. Evan Parker disse que a «improvisação é um método de composição». Concorda com esta perspectiva?
Concordo. De facto, a improvisação pode ser um meio para atingir determinados resultados que dificilmente podem ser obtidos através de notação. Mas é uma questão um pouco complexa. Não será sempre um meio para compôr? Ou composição não é sempre uma forma de improvisação? É claro que se pensarmos na improvisação enquanto cultura musical, de facto, ela é diferente, nos seus pressupostos ideológicos, da música que vive essencialmente da notação. Agora, na prática, acabam por estar dependentes uma da outra. Parece-me que o improvisador é tão informado pela sua memória quanto o compositor ou intérprete obrigado a reagir às circunstâncias específicas de um determinado momento. Penso que é interessante a consciência disto mas também o facto de que, tomando-as como formas de expressão independentes, se podem, contudo, relacionar num resultado sinérgico. É o que de alguma forma procuro que aconteça no LUME.

18. Interessa-lhe a ideia de “improvisação estruturada”? Está familiarizado com o “file-card” de John Zorn (organização de blocos sonoros com recurso a instruções vertidas em cartões) ou o “conducting” de Butch Morris, forma de dirigir baseada numa géstica própria?
Conheço o trabalho dos dois. Vi, inclusivamente, o Butch Morris ao vivo na penúltima edição do Jazz em Agosto. Ambos são processos interessantes e idiossincráticos. No caso do Butch Morris há um tipo de direcção que envolve um métier elaborado ao nivel da expressão corporal e gestual. No LUME, toda a improvisação é, de alguma forma, estruturada, quer no seu enquadramento com a composição, quer, na organização formal das situações mais livres. O aspecto da «condução», contudo, não é dominante, antes de mais pelo facto de o meu papel ao piano impedir a possibilidade de direcção efectiva e permanente e, depois, não acho ncessariamente enfrequecedora, pelo contrário, a situação de uma banda onde os músicos têm de sentir o conjunto e não seguir um maestro. Os niveis de concentração, envolvimento e sentido de integração têm de maiores.
19. A electrónica veio alterar todo o paradigma de construção musical e do improvisação. Como encara a utilização de instrumentos electrónicos? Equaciona a possibilidade de o LUME se poder vir a tornar, num futuro mais ou menos próximo, num ensemble electro-acústico?
Sim, a electrónica veio permitir um universo de novas possibilidades e revolucionar, em particular, os domínios do timbre e da textura. No disco do LUME, a electrónica surge no contexto de uma situação específica de estúdio que não pretende ser o duplicado da situação live. Em concerto, o LUME é predominantemente acústico. Mas tudo está em aberto para o futuro.
20. A velha querela entre swing e improvisação tem animado intermináveis discussões, com os partidários de cada uma das tendências a esgrimirem acesos argumentos. Conceitos como os de “tradição” e “vanguarda” vêm constantemente à liça. Como se posiciona face a esta temática? O swing é, para si, ingrediente essencial? (desenvolver...)
Isso é um problema de todas as músicas que desenvolveram uma tradição forte e se tornaram canónicas. Acontece no Jazz como na música Clássica ou no Fado. Mas não é uma questão que me interesse particularmente, estar a discutir o ponto onde o Jazz ainda é Jazz ou deixa de o ser.

21. Faz então sentido que se continue a cair nas recorrentes divisões entre “o que é jazz” e “o que não é jazz”?
Para algumas fará, para outras não fará, sem que isso, necessariamente, implique uma maior legitimidade da parte de uns ou de outros.

22. Que rumo pretende tomar daqui para a frente? Já pensa no segundo disco?
Penso em muita coisa mas é prematuro falar.


Tuesday, November 18, 2008

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